Os coloridos casarões que contrastam com as escuras águas do Rio Paraguaçu até dão ideia da outrora imponente metrópole do Recôncavo, cuja glória ecoa até os dias atuais anualmente entre 25 de junho e 2 de julho, quando é elevada a capital da Bahia. Mas a frieza dos números é o que aquece o passado: Cachoeira já foi a quinta maior cidade do Brasil.
No século XIX, nasceu por lá a enfermeira Anna Nery, o poeta Castro Alves e a Independência do Brasil na Bahia. Neste século também foi realizado o primeiro Censo Demográfico do Brasil, em 1872, onde a grandeza do município foi retratada.
Eram 88.181 habitantes, apenas 700 atrás da quarta colocada Campos, no Rio de Janeiro, mas 21 mil a frente da mineira Serro, a sexta. Mas o que chama atenção é a comparação com a atualidade: três vezes maior que a Cachoeira de 2024, com 29.251 pessoas, informa o IBGE.
O declínio da então Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira é esclarecido pelas razões da própria ascensão da cidade, que tornou-se ícone do Brasil após o 2 de Julho.
Ouro provincial
Numa era pré BR-324, o Rio Paraguaçu era a principal conexão de Salvador com o interior, e Cachoeira era o coração desta artéria fluvial. Pessoas e mercadorias vindas de toda a Bahia se aglutinavam por lá antes de embarcarem em saveiros rumo à capital – e vice-versa.
E nos séculos XVIII e XIX, auge do ‘Ciclo do Ouro’ nas Minas Gerais, a riqueza da província que perdera o posto de capital da colônia ainda provinha da primitiva cana-de-açúcar.
“E como essa atividade econômica estava entrelaçada com o agronegócio da época, que era o açúcar, e havia também uma quantidade significativa de lavradores, além da própria atividade cruel e trágica demarcada pelo tráfico escravocrata, ou seja, o tráfico de pessoas que rendia muito capital na época, fazia com que a vila de N. Rosário do Porto da Cachoeira fosse muito importante”, conta o historiador e professor da FADBA e da SEC-BA, Fábio Batista.
Apenas na cidade de Cachoeira, em 1835, eram 21 engenhos de cana-de-açúcar. “É possível considerá-la a segunda maior cidade da Bahia no período, ficando atrás apenas de Salvador. Isso já aponta a estatística demográfica e a força econômica da cidade naquele período”, acrescenta o geógrafo Gleidson Dias.
Ápice no 2 de Julho
Antes mesmo do ‘7 de Setembro’, em 25 de junho do revolucionário ano de 1822, portugueses e brasileiros enfrentaram-se em conflito que se estendeu até o dia 28 do mesmo mês. Ainda nas primeiras horas do embate, autoridades cachoeirenses reunidas na Câmara Municipal aclamaram Dom Pedro I como “Príncipe Regente e Defensor Perpétuo do Brasil”, razão para a deflagração dos conflitos e animosidade de ambos os lados.
Bradada a idependência às margens do rio Ipiranga, sucedida de uma “resistência colonizadora” concentrada em Salvador, Cachoeira tornou-se capital da Bahia durante as lutas até o 2 de Julho.
“A vila de Cachoeira foi exaltada nos jornais da época. O aparato de imprensa da Bahia foi transferido para o interior pela primeira vez, com as notícias replicadas nas demais províncias do Brasil. Também vem para Cachoeira a Casa da Moeda e toda a estrutura do governo insurgente que não respondia à Portugal”, lista Fábio Batista.
Anos após a vitória, o município foi condecorado como “Heroica Cidade da Cachoeira” através do Decreto Imperial de 13 de março de 1837, em reconhecimento à participação nos movimentos separatistas.
Queda da Cachoeira
Dezoito anos após o Censo de 1872, em 1890, Cachoeira seguia na quinta posição no ranking populacional. Mas desta vez da Bahia. Salvador permaneceu na liderança, enquanto Santo Amaro, Feira de Santana e Purificação ultrapassaram a terra de Castro Alves.
Eram 48.332 habitantes, 40 mil a menos. A queda abrupta é explicada pelo desmembramento de Cachoeira.
“A partir da Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira surgiram os municípios que compõem diferentes núcleos territoriais baianos, como a segunda maior cidade da Bahia hoje: Feira de Santana. Além dela, podemos citar outras: Castro Alves, São Gonçalo dos Campos, São Felix, Santo Estevão, Conceição da Feira, Ipecaetá, Muritiba, Cabaceiras do Paraguaçu, Governador Mangabeira, Cruz das Almas, Sapeaçu, Antônio Cardoso, Rafael Jambeiro, Santa Barbara, Anguera Tanquinho, Ipirá, Pintadas, Serra Preta, Baixa Grande, Macajuba, Itaberaba, Boa Vista do Tupim, Ibiquera, Ruy Barbosa e Lajedinho”, elenca Gleidson Dias.
A própria Santo Amaro, que em 1890 apareceu como quarta maior cidade do Brasil com, 88.832 mil habitantes, é uma das herdeiras da população de Cachoeira.
Mas o golpe fatal para o decréscimo populacional e econômico de Cachoeira foram invenções como trem e carro, que transferiram o entreposto comercial entre Salvador e interior para a cidade de Feira de Santana.
Este movimento não afetou apenas a protagonista do 2 de Julho, mas todo o Recôncavo Baiano.
Além disso, a economia baiana passou a focar em outras atividades no século XX, complexificando-se e abandonando a dependência agrária.
“Salvador passou a concentrar as principais atividades comerciais que antes eram feitas no Recôncavo. E a Região Metropolitana, nos anos 40 e 50 com as indústrias e refinarias ali instaladas, fazem todo o entorno ser esquecido. Cachoeira era uma cidade muito agrária, uma atividade perdeu importância”, explica o historiador Rafael Dantas.
Por A Tarde